Resenha | Confessions of a Crap Artist, de Philip K. Dick

Quando comecei a ler Confessions of a Crap Artist, percebi entender um pouco do porquê os livros de ficção literária do Dick não foram publicados durante a sua vida. Este, aliás, foi o único que não saiu postumamente, e portanto creio que um de seus melhores aceitos. Mas, é claro, digo que deve ser por uma questão estilística: Dick sempre foi um autor considerado mais brilhante por suas ideias e suas viagens do que por sua prosa, que, no melhor dos casos, é vista como um tanto apressada, crua, bruta, pouco polida.

Sem dúvida isso pode ser atribuído a um processo criativo que não admitia muito tempo para a revisão; vivendo sob a constante ameaça de inadimplência, seus livros eram escritos à base de anfetaminas, noites viradas e rascunhos enviados para o editor. Quem sabe diríamos que o estilo de Dick é, também, baseado um pouco em sua própria ausência — algo um tanto espontâneo, característico ainda que seco como seus livros de ficção científica, que, mais por sua escrita, se sobressaem pelas situações que constroem.

E, como em seus livros de fc, são as ideias que se sobressaem em Confessions of a Crap Artist. Se aqui não encontramos as grandes clássicas questões do autor (O que é real? O que é o humano?), ainda podemos ver seus traços se manifestando na forma de uma paranoia existencial. O livro acompanha a vida do círculo próximo da família Hume em sua casa no meio do campo do condado de Marin: o casal Charley e Fay Hume, o irmão de Fay, Jack Isidore – o “crap artist” do título – e um casal de recém-chegados na vizinhança, os jovens universitários Nathan e Gwen Anteil, conforme a vida de cada um vai se modificando e se construindo e destruindo quando todos os atores são colocados em seu lugar.

Charley se sente emasculado por uma esposa manipuladora e quer se recuperar dessa “castração” que o faz perder o juízo; Fay quer de qualquer jeito se aproximar do casal recém-chegado, que lhe provoca um magnetismo fulminante e cujo casamento vai se tornando cada vez mais instável com a presença e interferência da mulher que consegue tudo o que quer; o irmão-cunhado, facilmente impressionável e visto como um lunático (ainda que inofensivo) por todos os próximos, analisa a vida familiar ao mesmo tempo em que se mete com um bando de vizinhos que presumem se comunicar com seres de outra galáxia via telepatia. Uma receita de personagens esquisitos, contrastantes, e, no final, como comentaria com uma colega, detestáveis. Mas, ao mesmo tempo, fascinantes.

13356656Confessions of a Crap Artist me foi uma leitura desconfortável, um tanto agoniante, principalmente em seus primeiros capítulos — só comecei a engatar de vez na experiência a partir dos 30% de livro. O motivo: esses mesmos personagens, que, ao mesmo tempo em que morbidamente me fascinaram a acompanhar sua destruição mútua, fizeram-me em sua maioria antipatizar com cada uma de suas atitudes e personalidades, a ponto de considerá-los quase insuportáveis. Não é por acidente: Dick vai construindo um retrato, aparentemente um tanto autobiográfico, de hipocrisias e neuroses, cada um metido em sua própria cabeça, desconfianças mútuas nos outros e em si mesmo, paranoias e lembrando mesmo os demais da bibliografia do autor: é Jack Isidore realmente o “maluco” naquela casa, ou os são todos? Questões de sanidade, masculinidade, papéis sociais, a vida em pequenas comunidades, isolamento e construções de vidas e casamentos: eis um coquetel das pequenas inseguranças do dia a dia.

É angustiante e, se toda a literatura mainstream de Dick é assim, talvez demore para que eu queira me submeter a essa experiência. E, no entanto, é marcante: essas mesmas inseguranças e, ao mesmo tempo, a noção de que todos estão se destruindo e têm consciência disso, mas são fracos demais para se libertar das amarras desses relacionamentos, principalmente relacionados à personagem de Fay Hume. Tudo dava aquela velha sensação do desejo de dar uns tabefes nos personagens para que percebessem que aquilo estava tudo errado — e que todos pagariam o preço por isso.

O que, aparentemente, aconteceu. Ou acontecerá.

Aplico a esse enredo aquela velha analogia com um acidente de trem: não deu para parar de ver.

Pequenas opiniões das leituras de outubro

Vamos lá: mais um esforço para deixar isso aqui respirando. Compilarei aqui pequenas resenhas das últimas leituras; nesse caso, os livros que, por enquanto, terminei em outubro. Deu uma vontade de escrever a respeito.

The Good Lord BirdO pássaro do bom senhor (James McBride)

Com um uso singular da linguagem, emulando um ex-escravo do século XIX nos Estados Unidos pré-Guerra Civil, o livro de James McBride se destaca na representação um tanto caricata do abolicionista John Brown, que metaforica e literalmente adota o protagonista-narrador – o jovem Henry Shackleford – como seu amuleto da sorte, para acompanhar a ele e a seu exército esfarrapado em sua campanha anti-escravidão que eventualmente, como dita a História, acabará no fatídico cerco a Harpers Ferry, nos anos 1860.

Se o livro não faz muito mistério de como e onde vai acabar (afinal, em seu país de origem, este desfecho faz parte do aprendizado escolar obrigatório), compensa essa falta de tensão com o dilema principal do protagonista que, sendo uma criança jovem e tendo sido confundido com uma garota no momento de sua adoção (Henry prefere “sequestro”) por Brown e seus capangas, posa como uma garota, Henrietta – vulgo “Cebola” -, ao ver que assim pode evitar trabalhar pesado e participar do conflito armado.

Contando com diversas passagens por vários ambientes dos Estados Unidos em polvorosa, com o conflito entre os rebeldes pró-secessão e os abolicionistas como Brown advogando a insurreição armada do povo negro, dá-se a possibilidade de dezenas de cenários onde Henry/Henrietta/Cebola deverá se rebolar todo para que seu segredo não seja exposto e para não retornar a uma condição pior do que a qual se encontrava quando o Velho John Brown o(a) encontrou.

O estilo da prosa, com sua informalidade – beirando ao semi-analfabetismo no original, traço suavizado na tradução para o português por motivos de ritmo de leitura e estranhamento; esses artifícios funcionam melhor na língua inglesa -, traz certo frescor à narrativa, que, em partes, parece se arrastar um pouco.

É fato que os trechos do livro que contam com a presença pitoresca do Velho John Brown são os que realmente brilham. O retrato que é feito aqui dessa figura histórica, que não sei julgar até que ponto é próximo da realidade, é marcante: cheio de fervor religioso, uma certeza inabalável em seus propósitos e uma aparente indiferença pelos pequenos detalhes, somados à aura um tanto biruta que rodeia suas passagens, faz dessa figura – o velho sábio, mas maluco – o personagem mais interessante do livro.

Por isso, o final também não deixa nada a desejar, mesmo que seu desfecho seja (justificadamente) previsível. Apesar de todo o tom irreverente da narrativa, não deixa de formar, ao final, um retrato tocante da figura de John Brown, seu relacionamento com nosso protagonista e seu objetivo de vida, mesmo que através de métodos um tanto quanto questionáveis. Demora um pouco para engatar e podia ter sido um pouco mais curto, com uma certa “barriga” narrativa na altura dos dois terços do livro, mas, ainda assim, mesmo (e talvez principalmente) para quem, como eu, ignora essa parte da história norte-americana, é uma leitura recomendável.


High-RiseHigh-Rise (J. G. Ballard)

Tendo me mudado para um condomínio nos últimos dois meses, esse livro jogou toda uma nova luz sobre essas pequenas coisas que já me deixavam ressabiado antes de sua leitura. Quando estamos nessa espécie de microcosmos, com nossos vizinhos se repetindo diariamente no pátio abaixo da janela, e temos que participar de reuniões de condomínios repletas de uma surreal politicagem em pequena escala, ouvir reclamações aparentemente fúteis, sentir o ressentimento criado entre moradores pelas questões triviais mas repetitivas do dia a dia, vê-se que os pressupostos de Ballard não estavam longe da realidade.

Ora, um arranha-céus residencial que leva esse conceito de microcosmos à sua extrapolação lógica não é impossível: um prédio com shopping, salão, banco anexos em seu décimo andar, um restaurante no trigésimo quinto, parques, nos quais logo os ressentimentos pelas mesmas questões triviais (zona das crianças, cachorros fazendo sujeira onde não deviam) começam a estratificar os moradores em determinadas camadas, dando início ao desenvolvimento de um bairrismo de andares e a subsequente criação das camadas de classe, com seu poder social indicado por quão alto você mora no prédio.

Depois disso, os personagens, antes retraídos em seus apartamentos, buscando o mínimo de contato alheio possível, começam a se espalhar mais pelo prédio e seus vizinhos enquanto paradoxalmente deixam de se interessar pelo mundo exterior, que vai perdendo suas camadas de realidade conforme os acontecimentos no prédio vão ficando mais e mais violentos. Cerram-se no microcosmos, deixam de participar da rotina fora de casa, deixam de chamar pelos serviços essenciais, guiados pela curiosidade mórbida em saber o que acontecerá em seguida ao mesmo tempo em que há a necessidade de provar ao mundo que, ali, conseguem se acertar sem a ajuda do exterior. Em um toque de mestre, Ballard conseguiu a proeza de me fazer, eu próprio, esquecer de que havia um mundo exterior nos confins daquelas páginas, o arranha-céu e seus acontecimentos com tal aura bizarra e absorvente que me fez esquecer e parar e pensar por um bom tempo “ué, mas, afinal, isso é tão improvável!”.

Para algo tão mundanamente bizarro, a suspensão de descrença é um alto empecilho de imersão na leitura, mas a violência entre os moradores e suas atitudes tem esse “allure” hipnótico que, assim como aos moradores, nos distrai do mundo exterior e dos pensamentos invasivos.


The Space MerchantsThe Space Merchants (Frederik Pohl & C. M. Kornbluth)

Uma sátira bem cínica e interessante dos processos e da influência que a publicidade vem a exercer sobre o mundo e o público globalizado. Escrito em 1952, surpreende por sua ainda atualidade, até pela força que o setor ganhou desde que o livro foi escrito. Não é muito sutil como sátira, mas não acho que fosse a intenção; o livro pende para o cômico em muitas passagens, mesmo quando as coisas começam a desandar para um protagonista que, no começo, não é lá muito fácil de se gostar. É legal ver também o desenvolvimento de seu personagem com a passagem dos acontecimentos, do seu relacionamento com as pessoas e perceber como, nesse mundo em que vive, parece que as coisas estão sempre acontecendo em ritmo frenético – o que não é muito difícil; o próprio livro é narrado em ritmo acelerado, mal dando tempo do leitor respirar quando algo de potencial impacto emocional acaba de acontecer. Talvez isso também reflita um pouco o estado dos personagens; Courtenay parece ocupado demais para se importar.


O rasgão no realO rasgão no real (Braulio Tavares)

Uma leitura rápida e instigante, o ensaio de Braulio Tavares procura explorar as concepções do realismo literário e suas variações modernas e pós-modernas: desde explorar a relação entre a narrativa, o narrado, o narrador e o leitor até o próprio mundo representado. Temos o estilo realista para o mundo realista, o realismo no mundo fantástico, temos os livros em que a própria definição do que real e o que não é coloca em cheque tanto a visão de mundo dos personagens quanto a do próprio leitor. A ficção científica aparece como a literatura dessa ruptura do real por excelência, com seus artifícios de mundo e enredo que são apresentados como caso, especificamente o livro “Time Out of Joint”, de Philip K. Dick, cuja premissa – reminiscente mas anterior ao famoso “Show de Truman” -, serve para colocar todas essas perspectivas de realidade em constante tensão.

Resenha: Capital Revelada

Vamos estrear umas resenhas por aqui com um romance que vi nascer. Antes de dizer tudo o que penso sobre “Capital Revelada”, tenho que esclarcer que escrevo aqui de uma posição privilegiada: dividindo um quarto com o autor de um tempo para cá, pude acompanhar a concepção e os muitos desenvolvimentos da história que veio a se tornar esse livro. Falo então de um ponto de vista parcial, bem próximo, já que li o romance aos poucos, conforme ele ia sendo escrito, e conversando com o Atlas sobre a história e o seu desenvolvimento.

Dito isso, falo sobre o livro: Começamos com um mistério, o da foto que misteriosamente aparece na casa do protagonista, de mais de cinquenta anos de idade e tirada do outro lado do mundo. O enigma da foto se torna mais instigante com a aparição de dois elementos: o rapaz esquisito em sua faculdade que se parece com o retratado e o espírito mudo que passa a lhe observar do outro lado do quarto. Mantendo os spoilers ao mínimo (ou seja, sendo um tanto vago), isso tudo monta o cenário para que Luiz, o protagonista, possa começar a aprender não apenas sobre “coisas” que vivem nos vazios da cidade, além daqueles que as mantêm no lugar – e aqui o subtítulo dá a entender do que estou falando -, mas também sobre um passado que ele jamais imaginou que existiria. Continuar lendo Resenha: Capital Revelada