Quando comecei a ler Confessions of a Crap Artist, percebi entender um pouco do porquê os livros de ficção literária do Dick não foram publicados durante a sua vida. Este, aliás, foi o único que não saiu postumamente, e portanto creio que um de seus melhores aceitos. Mas, é claro, digo que deve ser por uma questão estilística: Dick sempre foi um autor considerado mais brilhante por suas ideias e suas viagens do que por sua prosa, que, no melhor dos casos, é vista como um tanto apressada, crua, bruta, pouco polida.
Sem dúvida isso pode ser atribuído a um processo criativo que não admitia muito tempo para a revisão; vivendo sob a constante ameaça de inadimplência, seus livros eram escritos à base de anfetaminas, noites viradas e rascunhos enviados para o editor. Quem sabe diríamos que o estilo de Dick é, também, baseado um pouco em sua própria ausência — algo um tanto espontâneo, característico ainda que seco como seus livros de ficção científica, que, mais por sua escrita, se sobressaem pelas situações que constroem.
E, como em seus livros de fc, são as ideias que se sobressaem em Confessions of a Crap Artist. Se aqui não encontramos as grandes clássicas questões do autor (O que é real? O que é o humano?), ainda podemos ver seus traços se manifestando na forma de uma paranoia existencial. O livro acompanha a vida do círculo próximo da família Hume em sua casa no meio do campo do condado de Marin: o casal Charley e Fay Hume, o irmão de Fay, Jack Isidore – o “crap artist” do título – e um casal de recém-chegados na vizinhança, os jovens universitários Nathan e Gwen Anteil, conforme a vida de cada um vai se modificando e se construindo e destruindo quando todos os atores são colocados em seu lugar.
Charley se sente emasculado por uma esposa manipuladora e quer se recuperar dessa “castração” que o faz perder o juízo; Fay quer de qualquer jeito se aproximar do casal recém-chegado, que lhe provoca um magnetismo fulminante e cujo casamento vai se tornando cada vez mais instável com a presença e interferência da mulher que consegue tudo o que quer; o irmão-cunhado, facilmente impressionável e visto como um lunático (ainda que inofensivo) por todos os próximos, analisa a vida familiar ao mesmo tempo em que se mete com um bando de vizinhos que presumem se comunicar com seres de outra galáxia via telepatia. Uma receita de personagens esquisitos, contrastantes, e, no final, como comentaria com uma colega, detestáveis. Mas, ao mesmo tempo, fascinantes.
Confessions of a Crap Artist me foi uma leitura desconfortável, um tanto agoniante, principalmente em seus primeiros capítulos — só comecei a engatar de vez na experiência a partir dos 30% de livro. O motivo: esses mesmos personagens, que, ao mesmo tempo em que morbidamente me fascinaram a acompanhar sua destruição mútua, fizeram-me em sua maioria antipatizar com cada uma de suas atitudes e personalidades, a ponto de considerá-los quase insuportáveis. Não é por acidente: Dick vai construindo um retrato, aparentemente um tanto autobiográfico, de hipocrisias e neuroses, cada um metido em sua própria cabeça, desconfianças mútuas nos outros e em si mesmo, paranoias e lembrando mesmo os demais da bibliografia do autor: é Jack Isidore realmente o “maluco” naquela casa, ou os são todos? Questões de sanidade, masculinidade, papéis sociais, a vida em pequenas comunidades, isolamento e construções de vidas e casamentos: eis um coquetel das pequenas inseguranças do dia a dia.
É angustiante e, se toda a literatura mainstream de Dick é assim, talvez demore para que eu queira me submeter a essa experiência. E, no entanto, é marcante: essas mesmas inseguranças e, ao mesmo tempo, a noção de que todos estão se destruindo e têm consciência disso, mas são fracos demais para se libertar das amarras desses relacionamentos, principalmente relacionados à personagem de Fay Hume. Tudo dava aquela velha sensação do desejo de dar uns tabefes nos personagens para que percebessem que aquilo estava tudo errado — e que todos pagariam o preço por isso.
O que, aparentemente, aconteceu. Ou acontecerá.
Aplico a esse enredo aquela velha analogia com um acidente de trem: não deu para parar de ver.